sexta-feira, 1 de maio de 2015

Meritocracia revisitada

O documento sobre a Pátria Educadora da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República apresenta quatro eixos para qualificar o ensino público. São os seguintes: 1) A organização da cooperação federativa na educação; 2) A reorientação do currículo e da maneira de ensinar e de aprender; 3) A qualificação de diretores e de professores; e 4) O aproveitamento de novas tecnologias. Vou comentar o primeiro e terceiro no dia de hoje.
Sobre a cooperação federativa, mesmo afirmando estar tentando concretizar o disposto no artigo 7º do Plano Nacional de Educação, as propostas apresentadas pelo documento são limitadas e não superam o quadro atual marcado pela ausência de um sistema nacional de educação e fraca participação da União no financiamento da educação básica.
Toda lógica das proposições é ter um arranjo federativo que “conserte as escolas” que não estão funcionando bem. Este mal funcionamento, obviamente, será detectado pelo já vigente sistema de avaliação que tem por base apenas a aferição de desempenho padronizado.
Quando o documento fala de “consertar partes do sistema público que não atinjam o patamar mínimo”, o mesmo não utiliza a lei do PNE para discorrer sobre a necessidade de se regulamentar o custo aluno qualidade inicial, ou seja, de se constituir o mais urgentemente possível um padrão mínimo de qualidade. Para o texto este patamar já está dado e é baseado nas notas obtidas pelos alunos nos testes padronizados, mesmo que inúmeras pesquisas mostrem que tais notas possuem forte correlação com o nível socioeconômico das famílias e que as condições de oferta educacional sejam profundamente desiguais.
O novo fundo, que teria “as atribuições deste fundo estaria a de financiar as ações corretivas”, não possui formato definido, critério redistributivo e também omite a obrigação escrita na Estratégia 20.10 no PNE, que afirma ser papel da União auxiliar financeiramente os entes federados que ficarem abaixo do CAQi. Na verdade, nas entrelinhas de suas páginas está explícita a negativa por parte da União de cumprir a legislação recentemente aprovada por julgá-la pouco factível.
Ainda sobre este ponto, destacar que os recursos do FNDE são mais decisivos para a sustentação do sistema educacional só é possível se justificar quando o autor do documento desconhece as bases do financiamento da educação básica. O impacto dos recursos federais repassados pelo PAR (mecanismo mais próximo do modelo corretivo proposto pelo documento) é muito pequeno. E o grosso dos recursos do FNDE está vinculado a programas universais já em funcionamento e que não precisam de correções (livro didático, merenda, transporte, etc.).
A terceiro eixo discorre sobre professores e diretores. Apresenta um diagnóstico do qual não tira as devidas conclusões e o mesmo é falho e preconceituoso. Vejamos:
1.       Diz que os “professores vêm comumente dos alunos mais fracos do ensino médio”, que “encontram maior facilidade em ingressar nas escolas de pedagogia, sobretudo as privadas”. Qual o remédio apresentado para o fato de que a maior parte de nossos professores são formados em instituições privadas de qualidade temerária? Nenhum.
2.       Diz também que “só pequena porção se forma na pedagogia e nas licenciaturas das universidades federais”, mas afirma que as instituições federais “estão longe de oferecer ensino compatível com rumo como o que aqui se propõe”. Bem, estas instituições não precisam manter coerência com o que pensa um ministro de um governo, elas obedecem diretrizes dos órgãos normativos do sistema e trabalham com o acúmulo teórico e prático de décadas.
3.       E mais, as instituições federais se deixam “fascinar, ao gosto de cada catedrático, com o torneio de manual entre filosofias da educação”, ou seja, forma mal os professores. No final do parágrafo o autor reconhece, contudo, que as mesmas conseguem “prover ao menos alguns elementos de formação aceitável”. Ainda bem, fico aliviado de meu trabalho (e de centenas de professores das faculdades públicas de pedagogia) não ser de todo inútil aos olhos da SAE. Dormirei mais tranquilo esta noite!
E quais são os remédios para este quadro pintado no documento?
1.       Deve-se estimular a prática de premiação das escolas que atingirem metas de desempenho (o autor deve ter ouvido o governador de São Paulo ou outro tucano renomado para chegar a esta ideia “inovadora”).
2.       Somente nomear diretores que passem pelos futuros Centros de Formação de Diretores, “seja qual for o método de escolha”, ou seja, sendo instruído corretamente a gestão democrática é um fator irrelevante para o documento. Obviamente que ter sido aprovado uma meta no PNE sobre gestão democrática não foi um fator considerado pelo autor, posto que irrelevante para os resultados educacionais.
3.       Os professores também deverão ser reciclados nos Centros de Qualificação Avançada para professores. “Tais centros ministrarão cursos intensivos para suplementar a formação nos cursos de pedagogia e licenciatura, desenvolver as práticas e os protocolos exigidos (fiquei com a impressão de que este termo é sinônimo de apostilamento, mas pode ser apenas um preconceito de minha parte) pelo Currículo Nacional e discutir as experiências e as inovações do professorado”.
4.       Acertadamente fala de Carreira Nacional, a qual deve estar vinculada ao piso nacional. Porém, apresenta uma novidade: piso regionalizado, o que é contraditório com carreira nacional e valorização docente. Aliás, fala de mobilidade entre estados dos docentes, mesmo que se saiba que tal mobilidade por cedência não se constitui em problema relevante para alocação de mão-de-obra docente, sendo os baixos salários (hoje regionalizados e proporcionais as condições financeiras de cada ente federado) um fator decisivo para qualquer migração.
5.       Acontece que a nova carreira, para o documento, “pode começar na forma de carreira especial e suplementar para professores que se comprometam a manter determinadas metas de desempenho. Receberiam adicional ao salário, depois de avaliação, por avaliadores independentes, do cumprimento de tais metas”. Em outras palavras, progressão na carreira e aumento salarial estará associados a cumprimento de metas de desempenho!
6.       E o documento trouxe de volta a certificação dos professores por meio de Prova Nacional (de novo o viés meritocrático). Como o documento considera frágil a formação docente e não propõe melhorias internas, o mesmo apresenta o remédio de regular a qualidade da formação via prova nacional, a qual “serviria como meio poderoso de influir nos cursos de pedagogia e de licenciatura”. Ou seja, via o conteúdo exigido nas provas o MEC alterará o conteúdo ministrado nas universidades, que terão sua autonomia revogada pela proposta sútil apresentada.
Em resumo, o documento tem por base um diagnóstico antigo de que o problema educacional é de gestão e de formação dos professores. E a forma de resolver estes dois gargalos é, ao mesmo tempo, qualificar melhor os gerentes (diretores é o nome fantasia e antigo!) e estimular o trabalho dos professores via premiação (que sempre pressupõe punição no outro lado da moeda), atrelando repasse de recursos para as escolas e carreira docente ao cumprimento de metas.
Obviamente que para formar professores que estejam preparados para cumprir tais regras e protocolos é necessário incidir sobre as universidades públicas e particulares e a certificação inicial é um forte instrumento de condicionamento curricular, vide a experiência bem-sucedida do ENEM no currículo de escolas do ensino médio. Nada como recolher ideais em experiências que estão dando certo (pelo menos para a direção defendida no documento!).
É uma revisita a política de premiação via avaliação em larga escala. É mais do mesmo, mas em larga escala.


Um comentário:

Ricardo Coração de Leão disse...

Estão cada vez mais perdidos, isso sim.