segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Documento inoportuno

 

 

Como diz Clausewitz, a jogada mais eficaz que eu possa fazer não depende só do que eu faça; depende também do que meu adversário faça.

(...) se ignoro a explicação do outro ou lhe atribuo a minha, é impossível jogar bem e ser um bom estrategista.

Carlos Matus

 

Muitos governos municipais estão impondo o retorno presencial dos alunos, em alguns casos isso já vem se mostrando desastroso, como no caso de Manaus e Belém, mas o aumento de casos de contaminação entre professores e alunos não vem ganhando manchete, nem a segunda onda na Europa aparece com destaque. Os governos e a imprensa querem que a economia volte a girar, que os lucros voltem a acontecer e notícia ruim já não é prioridade. E quem está adoecendo são os pobres e os professores da rede pública. Nem vou citar o governo federal, negacionista e que boicota toda medida sanitária séria em nosso país.

Na educação básica as entidades docentes travam dura batalha contra essas medidas e em muitos casos a própria Justiça vem impondo abertura ou fechamento de redes escolares.

Nas universidades públicas, muitas das quais contribuem muito com informações cientificas relevantes sobre o comportamento da pandemia, estamos em ensino remoto emergencial e até o momento não existe forte pressão para retorno presencial imediato, mas com o retorno das escolas privadas essa pressão irá aparecer.

Escrevo este posto para criticar um Manifesto intitulado “Ocupar as escolas, proteger as pessoas, recriar a educação”, lançado essa semana por 28 entidades da área da saúde e educação, dentre elas a ANPED, ANFOPE e CNTE. A associação dos reitores (ANDIFES) e sindicato paralelo do ensino superior (PROIFES) também subscrevem o documento.

A intenção manifesta do texto é disputar a narrativa de retorno, propondo uma concepção de escola, de cuidado e de retorno. Além de mostrar o acirramento das desigualdades que o isolamento social provocou, o texto faz afirmações como as que transcrevo abaixo:

Nesse contexto, o debate sobre reabertura das escolas e consequente retomada de atividades educacionais se tornou tão polarizado quanto o ambiente político do país.

Mais do que retorno a aulas e stividades presenciais, precisamos trabalhar para reabrir e ocupar as escolas, este equipamento público singular, valioso e, nos seus limites, de acesso universal.

Reabrir escolas e acolher estudantes e profissionais pode ser a melhor medida em determinadas comunidades, para garantir a vida, a saúde e a convivência saudável.

Convocar o poder público para apoiar esse movimento de abrir-ocupar-proteger-recriar, viabilizando condições adequadas, principalmente do ponto de vista sanitário, para que a frequência à escola como espaço comum seja segura para todos os integrantes da comunidade escolar, com odos os cuidados de proteção individual e coletiva. (Grifos meus)

Sei que a intenção é de disputar uma visão de retorno, mesmo que algumas frases me sejam estranhas para serem ditas por entidades progressistas (espera talvez serem ditas pelo Todos pela Educação). Mas, como nos ensina Carlos Matus, citado no inicio deste post, não jogamos sozinho, o adversário joga e tem muto poder para impor uma narrativa.

O Manifesto, lançado neste momento, reforça o discurso dos governos e do governo federal de que as escolas podem voltar, com algumas garantias, mas podem imediatamente voltar. Este é o único debate que está sendo travado na opinião pública brasileira: é hora de retorno presencial ou não.

Em que pese as salvaguardas e a ideia de disputar o sentido da escola, de sua prática pedagógica, do formato de suas decisões, ao propor reabrir as escolas, o documento ajuda os governos e fragiliza a luta de sindicatos e associações que se posicionam contra esta medida em suas cidades.

E mais, Andifes e o sindicato paralelo do ensino superior colocam as universidades públicas, estaduais e municipais, no seio deste debate. Ou seja, há movimentação e intencionalidade no meio dos reitores de voltar “a normalidade” e concordância do sindicato paralelo que podemos voltar.

Felizmente dois espaços que valorizo muito pela coerência não assinaram.  A Campanha Nacional pelo Direito a Educação, que faz excelente trabalho de articulação política e que trava intenso debate com movimentos empresariais que querem o retorno presencial das aulas. E o nosso sindicato nacional do ensino superior, o ANDES, que defende que retorno presencial somente com condições sanitárias adequadas e medidas de proteção aos docentes, técnicos e alunos.


Ou seja, um documento lançado na hora errada, com propostas que somente ajudam a quebrar a nossa justa resistência contra aqueles que querem nos colocar em risco, em nome da volta na normalidade.

 

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