quarta-feira, 1 de abril de 2020

MP 934: crueldade e esperteza andam juntas


Se existe uma certeza (menos para o lunático que governa o país) é que a superação da pandemia não se dará no curto prazo, alguns sonhando com final de maio, outros mais realistas dizendo que o caos se estica até agosto.
Bem, como a maioria dos governos estaduais e municipais foi paralisando as atividades escolares como primeira etapa do isolamento social, procedimento totalmente acertado, significa que pouco ou nada de semestre letivo tivemos na educação básica.
No ensino superior, especialmente a rede federal, esse processo aconteceu, mas de forma mais desigual, sendo que na falta de diretriz do Ministério (dirigido por um negacionista de primeira linha) cada instituição foi decidindo por sua conta ou sendo forçada por decretos estaduais a paralisar suas atividades.
Depois de algum desencontro sobre suspender, cancelar ou manter de forma à distância, na prática temos todo o sistema de ensino em suspenso neste momento.
Eis que o governo federal acorda. Depois de um pronunciamento onde foi escalado um sósia do presidente para falar (me nego a acreditar que aquele fosse o presidente que acordou no dia seguinte e tuitou um vídeo falso sobre desabastecimento, certamente foi um ator contratado pelos ministros menos lunáticos), foi publicada hoje (01.04) uma Medida Provisória, de número 934, flexibilizando o número de dias letivos do calendário escolar e remetendo aos sistemas de ensino outras providências.
Sobre a educação básica flexibilizou apenas os dias letivos, mantendo a carga horária mínima de 800 horas.
Para as instituições de ensino superior, vale a mesma regra, mas estabelece possibilidade de abreviar a duração dos cursos de Medicina, Farmácia, Enfermagem e Fisioterapia, desde que o aluno cumpra, no mínimo, 75% da carga horária do internato do curso de medicina; ou 75% da carga horária do estágio curricular obrigatório dos cursos de enfermagem, farmácia e fisioterapia.  
Vamos por partes. O que acontece em seguida (na verdade imediatamente, posto que MP entra em vigor na data de sua publicação)?
1.       No caso da Educação Básica, a competência para estabelecer calendário, nos limites do estabelecido na LDB, é de cada sistema de ensino (estadual ou municipal), os quais abrangem todas as escolas privadas na sua jurisdição.
2.       A combinação entre dias letivos e horas mínimas de aula possuem uma relação direta. Muitas redes possuem mais de 800 horas, mas precisam ter pelo menos 200 dias letivos. Em média temos 5 horas. Em 2014, por exemplo, tínhamos 35,2% da rede urbana e 56,8% da rede escolar rural oferecendo até 4 horas diárias. Ou seja, não é simples reduzir o número de dias sem que proporcionalmente se mexa nas horas obrigatórias.
3.       Concordo com as opções que Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, sistematizou hoje mais cedo. Quatro possibilidades existem para os gestores da educação básica com a edição da MP 934: 1) ampliação da educação em tempo integral; 2) conclusão do atual ano letivo em 2021; 3) reposição de aulas com atividades complementares; e 4) Educação a Distância (Ead).
4.       A primeira é impraticável, pelo volume de alunos envolvidos, pelas condições financeiras das redes e pelo tempo para ampliar espaço físico. A terceira se torna precária diante da quantidade de horas que precisam ser repostas.
5.       Ficamos com duas alternativas e com a viabilidade das mesmas ainda condicionada a data de retorno (que ninguém arrisca fazer prognósticos, especialmente por que somente em abril e maio estaremos no pico da contaminação).
6.       O grande risco que corremos é que esse formato presente na MP tenha sido propositalmente escolhido para pressionar pela quarta alternativa, forçando a opção por ensino à distância. Como todos sabem (e quem não sabe é bom ficar atento) muitos empresários olham a crise como uma grande oportunidade de negócios, de novas oportunidades para lucrar, por incrível e cruel que isso pareça.
7.       Existe uma pressão para introduzir de forma violenta o ensino à distância na educação básica e ampliar sua possibilidade no ensino superior. São propostas que juntam a fome com a vontade de comer: falta de alocação de recursos com crescimento da demanda.
8.       Agora, com a pandemia e suspensão das atividades escolares, podemos estar diante de uma medida feita por encomenda para forçar gestores a comprar produtos de educação à distância. E, adivinhem, quem representa um dos maiores grupos internacionais nesta área? A irmã querida do nosso ministro da economia.
9.       Utilizar educação à distância com saída para uma rede escolar em um país com tanta desigualdade de acesso a bens básicos (água, por exemplo), tendo como pré-requisito ter acesso a rede de internet boa e presença de pais para monitorar as atividades é de uma crueldade sem tamanho. Milhões de brasileiros pobres não terão condições de acessar as atividades e, na melhor das hipóteses, seus filhos ficarão privados dos conhecimentos repassados e, no pior cenário, serão reprovados por péssimo desempenho.
Já tivemos suspensões grandes de anos letivos, não de forma generalizada no país inteiro, mas afetando redes escolares grandes em São Paulo, Rio, Minas Gerais e rio Grande do Sul. E qual foi a providência que gestores negociaram com os trabalhadores e com a comunidade? Esticar o calendário, entrando pelo ano seguinte. Por que tal experiência não está sendo colocada na mesa? `Por que o governo não flexibilizou também a carga horária? Tudo isso me soa suspeito, feito por um governo suspeito, tendo como gestor do MEC no meio da crise um lunático rancoroso e incompetente.
Cabe ao Congresso Nacional, de forma urgente, ouvir gestores estaduais e municipais, estudantes e trabalhadores da educação, para que a forma que resolveremos o problema provocado pela suspensão do calendário. E não permitindo que o debate seja sequestrado por interesses ocultos e lucrativos.

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