sábado, 29 de fevereiro de 2020

O risco de aumento da desigualdade educacional

Recebi um precioso texto da professora Nathália Cassetari, doutora em educação pela USP e docente da UnB. Um alerta para os riscos da proposta de vincular parte da complementação da União a indicadores de desempenho.




Com o final da vigência do Fundeb se aproximando, estamos em um momento crítico para a elaboração de um novo fundo, o que, por um lado, proporciona uma oportunidade ímpar para corrigirmos rumos e aprimorarmos o instrumento; por outro, pode servir para criar distorções que dificultem ainda mais a garantia de qualidade e equidade entre as redes de ensino brasileiras.
Dentre os temas que vem provocando intensos debates estão: de quanto deve ser a complementação da União, de onde devem vir esses recursos, a necessidade ou não de um sistema híbrido e a vinculação de parte dos recursos do fundo ao alcance de determinados “resultados” educacionais. Este último ponto, que será o foco deste texto, tem sido amplamente defendido por parlamentares vinculados a instituições privadas que atuam na educação brasileira (inclusive financiando a formação desses congressistas em instituições estrangeiras) e entrou para o substitutivo apresentado pela profa. Dorinha (DEM-TO), relatora do projeto na Comissão Especial criada para deliberar sobre a temática.
A proposta é que a complementação da União passe para 20% do valor total do fundo, sendo que 10% permaneceriam com as mesmas regras praticadas atualmente, 7,5% seriam redistribuídos de acordo com Valor Aluno/Ano Total (VAAT) e 2,5% seriam destinados às redes públicas que “alcançarem evolução significativa dos indicadores de atendimento e melhoria da aprendizagem com redução das desigualdades, nos termos do sistema nacional de avaliação da educação básica” (Substitutivo PEC 15/2015, Art. 7º).
Parece estranho que alguém se posicione contra a garantia de mais recursos para as redes que conseguirem melhorar a aprendizagem e reduzir as desigualdades educacionais, visto que, de acordo com seus idealizadores, esse mecanismo poderia servir como um estímulo para que todas as redes busquem esses resultados, o que potencialmente beneficiaria milhares de estudantes. Entretanto, o objetivo deste texto é, justamente, apresentar três problematizações a essa proposta: a primeira se refere às premissas (equivocadas) que a sustentam; a segunda, à dificuldade de viabilização, ao menos tal como ela foi apresentada; a terceira, a algumas das consequências que ela pode causar.
A primeira premissa que questionamos diz respeito às redes precisarem de um estímulo externo (financeiro) para fazerem o que já deveriam estar fazendo. A aprendizagem dos alunos e a redução das desigualdades deve ser objetivo das redes de ensino independentemente de qualquer prêmio ou competição. Esse e outros resultados educacionais devem e são buscados cotidianamente por redes de ensino, gestores, professores, etc. mesmo sob condições extremamente adversas, o que nos leva à segunda premissa que questionamos: a ideia de que o financiamento não é um meio para o alcance de resultados educacionais, mas sim um fim. Dentro dessa lógica, as redes já teriam plenas condições de alcançar melhores resultados educacionais, só não o fazem por falta de estímulo, o que desconsidera que tais resultados, dentre muito outros fatores, também são fruto do investimento feito na educação. Se o que se quer é a melhoria da aprendizagem dos alunos e a redução das desigualdades, então é preciso que se garanta as condições para que isso aconteça, o que implica em maior financiamento a priori, não posteriormente.
Além de partir de premissas que consideramos equivocadas, a proposta apresenta sérias dificuldades para ser viabilizada. Para que se premiem algumas redes, faz-se necessário um mecanismo de avaliação que garanta a aferição dos resultados educacionais. O problema é que a educação é uma atividade extremamente complexa, com muitos objetivos diferentes, muitos deles difíceis de mensurar. Podemos citar, como exemplo, o preparo para o exercício da cidadania, um objetivo educacional expresso no art. 205 da Constituição Federal: como avaliar se uma escola tem preparado bem os alunos para o exercício da cidadania? Será possível encontrar um consenso sobre os critérios que devem ser considerados?
Os defensores da proposta contra-argumentariam que os objetivos da educação considerados estariam circunscritos ao Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SINAEB). Ressaltariam, ainda, que os resultados obtidos seriam de extrema relevância para a totalidade das redes de ensino e, portanto, ainda que não abrangessem a totalidade dos objetivos educacionais, deveriam ser estimulados.
Esse sistema, entretanto, ainda não existe. Ele foi proposto em meio a críticas ao Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), em especial por ele se limitar ao resultado dos alunos em avaliações em larga escala. O Ideb vai um pouco além e incorpora os indicadores de fluxo escolar (aprovação, reprovação e evasão escolar) a esses resultados, sendo ainda bastante limitado. 
Já existe uma proposta concreta para o Sinaeb (Santos, Horta Neto e Junqueira, 2017), na qual estão previstas cinco diretrizes (universalização do atendimento escolar, melhoria da qualidade do aprendizado, valorização dos profissionais da educação, gestão democrática e superação das desigualdades educacionais) que se subdividem em 17 dimensões. Ou seja, trata-se um sistema muito mais abrangente. Vale destacar que a proposta não prevê a classificação das redes de ensino e, muito menos, a premiação de algumas delas.
O Sinaeb foi aprovado como uma das estratégias para a realização do Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014), entretanto, o atual governo não tem demonstrado nenhuma intenção de tirá-lo do papel e nada garante que a proposta apresentada seria de fato respeitada.
Assim, o que temos concretamente para a avaliação das redes de ensino é o Ideb e o Saeb que, se forem utilizados como critério para a distribuição do adicional, acabarão premiando as redes que já tem mais recursos, visto que seus resultados estão fortemente associados ao nível socioeconômico dos alunos. O Fundeb passaria, então, a aumentar a desigualdade entre as redes de ensino ao invés de combatê-la.
Vale dizer que, se as redes não tiverem chances iguais de receber a premiação, ela deixa de funcionar como um estímulo para a mudança de comportamento, sem contar a injustiça que se instauraria no sistema. Também é preciso considerar que o financiamento adicional pode acabar incentivando fraudes e outros comportamentos questionáveis (como a redução do currículo, por exemplo) e, portanto, a avaliação deve ser realizada com muito cuidado para que a busca por determinados resultados não acabe prejudicando outros objetivos educacionais igualmente relevantes.
Em nome de combater as desigualdades educacionais, a proposta incorporada pelo relatório da PEC 15 trará mais desigualdade. E, portanto, urge que tal dispositivo seja excluído de um texto que se pretende não mais ser uma cláusula transitória e sim um dispositivo permanente de nosso arcabouço jurídico.

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