É verdade que o coronavírus não tem preferência por pessoas
ricas ou pobres. Nesse sentido podemos dizer que, em tese, as chances de um
rico e um pobre serem contaminados é igual. Aliás, não foram os pobres que
trouxeram o vírus para o Brasil, retornando de viagens internacionais.
Mas a igualdade termina aqui. No restante do percurso a
desigualdade já está fazendo a diferença. Vejamos:
Foto: Raimundo Pacó
Quarentena: Os ricos e as camadas médias da população, com
empregos estáveis, profissionais liberais e funcionários públicos possuem muito
mais condições para cumprir o isolamento social do que os trabalhadores
assalariados, ambulantes, empregadas domésticas, desempregados e demais
deserdados desse país. Os pobres continuam, como regra, trabalhando. Nos
prédios em quarentena continuam trabalhando quem limpa, quem vigia, quem cuida
do conforto dos que estão nos apartamentos.
Dou meu exemplo. Sou professor universitário, estou em casa,
não tenho empregada doméstica. Meu filho mais velho, trabalha numa empresa que
presta serviço de vigilância e portaria. Todo dia ele atravessa o Distrito
Federal para trabalhar e tem contato durante doze horas com os moradores do
prédio onde trabalha. O risco do meu filho ser contaminado é infinitamente
maior do que o meu, que saio uma vez por semana para buscar meu outro filho e
comprar alimentos.
Assistência médica: uma pessoa rica ou assalariada, via de regra
tem algum plano de saúde. Se passar mal ou tiver algum sintoma, a minha
primeira providência não será entrar na fila de uma UPA. Não, eu iria num dos
hospitais credenciados pelo meu plano de saúde.
Bem, os mais pobres não possuem plano de saúde, dependem do
atendimento nas unidades de saúde, que já estavam superlotadas e com poucos
médicos antes da pandemia. Os relatos de filas de pessoas passando mal que me
chegam de Manaus e Belém, para dar exemplo de locais que conheço bem, são
desesperadores. Tem UPA que está fechada. Tem UPA que já está lotada. As
pessoas pobres nem entrarão nas estatísticas e muitos morrerão em casa, como
está acontecendo em Manaus. E serão enterrados sem que se saiba a causa da
morte.
Testes: O acesso a testes no Brasil é ridículo até o momento.
Faz mais de mês que o Ministério anuncia chegada de testes e isso esses estão
quase virando lenda urbana. Agora, no final de abril, o Distrito Federal e
outras poucas cidades começaram a fazer testes. No DF é no esquema de drive thru,
com pessoas nos seus carros, muito seguro. Mas, e a maioria da população que
não possui carro? Vai ser testada quando? Ou a testagem é privilégio de bairros
nobres e os mais pobres somente serão testados quando conseguirem ser
atendidos, depois de passarem a noite inteira, no sol e na chuva e em
aglomerações nas portas das UPAs que estiverem funcionando?
Leitos de UTI: Partidos de oposição, com destaque para o PSOL,
pressionam para que exista fila única de leitos de UTI, por que parte relevante
desses leitos estão em hospitais privados e não estão disponíveis para
atendimento no SUS. A rede pública já está ficando saturada ou entrou em
colapso em muitas cidades, mas isso não quer dizer que todos os leitos
existentes naquele Estado ou cidade estão sendo utilizados, é que a parte
privada aguarda doentes de seus convênios. É justo isso?
Até a morte não é igual, ou alguém acha que as valas comuns
serão o destino dos mais ricos?
Por fim, o colapso sempre começa nos elos mais fracos, sejam
as pessoas os as cidades. É no Norte e nordeste que o sistema já começou a
entrar em colapso. Infelizmente a sensibilidade do país para o a tragédia
cotidiana dessas regiões ainda é pequena, parece algo distante. Não é à toa que
as camadas médias choraram pelos mortos na Itália e quase não perceberam os
mortos de Guayaquil (Equador). Será que sem a nuvem de fumaça sobre São Paulo
as queimadas na Amazônia teriam tido o destaque que tiveram? Será que
despertaremos somente quando as covas rasas e filas de carros fúnebres
acontecerem no Rio ou São Paulo?
Tenho lido muita gente otimista dizendo que o mundo sairá
melhor desta pandemia, mais solidário, mais coletivo, mais preocupado com o
próximo. Não acredito nisso, infelizmente. O que pode acontecer, da mesma forma
que as catástrofes e guerras evidenciaram no passado, é que a desigualdade fique
mais evidente e isso faça com que mais pessoas lutem contra ela.
É necessário que se garanta, com urgência uma fila única de
leitos de UTI, que se garanta material de EPI para profissionais de saúde, não
somente para aqueles que estão monitorando pacientes na UTI, mas para aqueles
que estão na porta de entrada do sistema, fazendo a triagem de pacientes e
atendendo casos leves e moderados.
É necessário que tenhamos mais leitos e fila única para
todos os leitos existentes, a exemplo do que vários países da Europa fizeram.
É necessário fazer testes em massa, de forma a que os dados
sejam confiáveis e que se possa ter informações para operar medidas sanitárias cientificamente
amparadas.
É necessário viabilizar as condições para que as pessoas
mais pobres fiquem em casa, garantindo estabilidade do emprego e renda
emergencial.
Nenhum comentário:
Postar um comentário