O grande poeta José Saramago disse certa vez que “é preciso continuar a dizer não, mesmo que se trate de uma voz pregando no deserto”. Ao ler as matérias da imprensa sobre a proposta ministerial de aplicar uma prova para todas as crianças com oito anos de idade me recordei do conselho deste importante conselho.
A imprensa nacional ouviu alguns segmentos da educação sobre a proposta do MEC de submeter sete milhões de crianças de oito anos a um exame nacional (Provinha Brasil). Pelo que noticiou a imprensa o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, anunciou que o exame será reformulado para que se tenha um panorama da alfabetização no país.
Tanto a imprensa quanto algumas entidades defenderam a idéia ministerial com os seguintes argumentos:
1. Antes, a primeira avaliação “pra valer” que os alunos do ensino fundamental participavam era a Prova Brasil, aplicada no 5° ano, cujos resultados compõem o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), indicador que determina a qualidade de ensino oferecido pelas escolas e pela rede de ensino do país.
2. A prova será um dos principais instrumentos do futuro programa Alfabetização na Idade Certa, que o MEC pretende lançar.
3. É importante avaliar as crianças mais cedo para que possíveis problemas sejam detectados precocemente.
4. A mudança no perfil da Provinha Brasil pode ter bons resultados nas redes de ensino, a depender da forma como for organizada. A prova deve ser aplicada somente aos alunos do 3° ano e não para os do 2º ano, como era feito até o ano passado.
5. Permitiria mais transparência da qualidade educacional, aumentando o controle dos pais sobre o ensino dos filhos.
Gostaria de usar este espaço virtual para discordar de quase todos os argumentos apresentados publicamente.
1°. As escolas possuem um sistema de avaliação “pra valer”, sejam as da rede pública, sejam as da rede privada. Desde cedo os alunos são sistematicamente avaliados. O grau de complexidade deste processo de avaliação vai crescendo com o caminhar do aluno na escola. Ou seja, não é verdade que os alunos somente são avaliados pelo MEC. Cabe as escolas envolver os pais no processo de acompanhamento do desenvolvimento dos seus filhos.
2°. Não é verdade que o Ideb determine a qualidade do ensino oferecido pelas escolas. Este indicador é incompleto, captando apenas aspectos de aprendizagem (mesmo que muito importantes), não conseguindo mensurar outras dimensões do processo educacional. A Conferência Nacional de Educação alertou para estes limites, mas o MEC fez ouvido de mercador pra muita coisa decidida pela sociedade civil. Este tipo de afirmação desconhece que as notas no IDEB sofrem influência decisiva das condições socioeconômicas dos alunos, dos insumos disponibilizados de forma diferenciada e desigual pelas redes de ensino, do padrão de financiamento existente, dentre outros fatores desconsiderados.
3°. Caso o MEC tenha pressa em lançar o programa Alfabetização na Idade Certa (novos ministros sempre apresentam alto índice de ansiedade!) a instituição possui elementos suficientes para formatar as ações. Aliás, dados apresentados pelo atual Ministro em audiência pública no Senado e disponíveis no portal do MEC mostram que o problema da não alfabetização na idade certa não é nacional, tem forte recorte regional. Basta ver que os índices de crianças não alfabetizadas no Sul e Sudeste são baixos (RS-6,7%; SC-5,1%; PR-4,9%; SP-7,9% MG-6,7%. Somente ES-10% e RJ-9,3% inspirariam maiores cuidados). O problema se localiza nos estados com maior aporte de recursos e nas regiões Norte e Nordeste (destaque para AL-35%; MA-34%; PA-32,2% e PI-28,3%). Ou seja, os dados apresentados pelo ministro, somados a informações diagnósticas das secretarias estaduais e municipais, são suficientes para formatar medidas urgentes e necessárias.
4°. Afirmar que quando mais cedo se avalia um problema mais cedo se busca solucioná-lo é o tipo de afirmação óbvia, que nada acrescenta no enfrentamento do problema. A questão principal é se, para enfrentar o problema da não alfabetização de crianças aos oito anos é preciso aplicar uma prova para sete milhões de crianças. Considero desnecessário para identificar o problema (já identificado), não acrescentará informações relevantes que já não estejam disponíveis em pesquisas acadêmicas da área e será um uso indevido de vultosos recursos públicos (que pelo que sei não estão sobrando em nosso país).
5°. O questionamento não pode ser apenas sobre o formato da prova (se aplicada para crianças no segundo ou terceiro ano), mas na própria motivação da proposta apresentada. O ministro (mais um dentre vários) está encantado com a possibilidade do MEC apresentar números à sociedade, produto líquido e certo dos exames de larga escala, mesmo que isso não acrescente um grão de areia no conhecimento do problema, exponha as crianças a prematura tensão de uma prova nacional e que custe os parcos recursos de sua nova pasta.
6°. É a continuidade da visão de que a principal tarefa do MEC é fiscalizar as redes e regular os sistemas estaduais e municipais. É uma forma eficiente de jogar a responsabilidade do problema (deste e de outros) para os demais entes federados e não assumir responsabilidades mais significativas na resolução dos reais problemas da qualidade da oferta do ensino público no país.
7°. Cabe perguntar por que outras avaliações inscritas na lei não são priorizadas pelo MEC. Por exemplo, até hoje não saiu do papel nenhuma pesquisa institucional sobre o real custo-aluno nas redes públicas. Até hoje não foi homologado o parecer do Conselho Nacional de Educação que institui um padrão mínimo de qualidade (inspirado no CAQ desenvolvido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação). E até agora o MEC não moveu uma palha para liberar recursos para estados e municípios que não conseguem pagar o piso salarial do magistério. Não é falta do que priorizar na nova pasta.
8°. Por último, a questão da transparência. Sou totalmente favorável a maior transparência possível do que é feito na educação em nosso país. Sou favorável que cada pai, cada mãe saibam como está o seu filho na escola, que possam participar efetivamente das decisões pedagógicas e administrativas da escola, que elejam a direção da escola dos seus filhos. Sou favorável que os conselhos municipais de educação controlem a integridade dos recursos educacionais e que os orçamentos da área só sejam enviados às Câmaras e Assembléias após aprovação pelos respectivos conselhos educacionais. Sou favorável que os gastos efetuados sejam publicizados para toda a população. Isso são prioridade e transparência.
9°. Não é transparência dizer para um pai que tem seu filho numa escola precária (sem os insumos que garantam um padrão mínimo de qualidade) que a nota da escola é ruim e que ele deve usar o seu “direito” de escolher outra escola com notas melhores. Ou então estimulá-lo a achar que sem aporte de recursos pedagógicos, humanos e materiais, solitária nas suas dificuldades aquela escola vai dar a volta por cima somente por que o MEC publicou a nota média dos seus alunos de oito anos de idade.
A comunidade educacional e os gestores precisam ter a coragem de dizer não a mais esta idéia mirabolante do MEC.
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